quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Notícia do dia 12/11/09

Engraçado. Engraçados, pra falar a verdade. O casal. Ela, pequenina, sentada assim como o marido, mal toca os pés no chão do trem. Mas cruzas as pernas finas de uma forma engraçada, é assim: ela as cruza normalmente, mas passa o pé da perna apoiada por detrás da perna de apoio. A (pouca) panturrilha é o que prende o pé ali. E o pé de apoio mal alcançando o chão, que engraçado. Chega a ser suave, de tão esforçado. O marido alcança sem problemas, confortavelmente. Joelhos afastados cerca de vinte centímetros um do outro, mãos entrelaçadas próximas ao sexo. De vez em quando, porém, as solta e coça, com a direita, o braço por debaixo da manga de sua camisa social completamente desabotoada. O tórax exposto revela sua idade: não tem menos de setenta anos.

Sua esposa idem. Percebe-se pelos braços, os tríceps cheios de dobras contra o seio. E é magra, a senhora. Mas idade é idade, baby. O buço escurecido por alguns pêlos está rendido, enrugado. Seus lábios são os mais finos que já vi. Mal abre a boca, exceto para bocejar, mostrando a língua incrivelmente ainda bastante rosada. Tem dentes. Pode ser dentadura, ok, mas os tem. Já o marido parece que não. Os lábios voltados para dentro são típicos de pessoas já sem seus dentes. Ele mantém sua boca entreaberta e ainda assim nada vejo. É um fosso, ou algo do tipo. A idade engoliu sua boca.

Ele de boné e barba por fazer; ela de brincos dourados e cabelos até os ombros, penteados para trás. Começam a conversar. Não sorriem, mas não estão brigando. É assunto de adultos. Devem estar juntos há um bom número de décadas, mas ainda permanecem atenciosos um com o outro. Ele a ouve falar com a boca aberta de criança de três meses de idade. Ela gesticula com as mãos trêmulas de idosa, aproximando-se do marido para facilitar o entendimento (o trem faz muito barulho movendo-se). Cessam a conversa de repente: ele olha ao redor incessantemente, mas numa calma absurda. Já viu de tudo, deve estar apenas procurando o que pode ter mudado. Ela fixa seu olhar num ponto qualquer do espaço e ali fica, como peixe dormindo. Mas está atenta, de uma forma tão sutil que só a experiência nos dá. Ele seca os lábios na manga da camisa, encarando a esposa que encara a paisagem, arrumando os cabelos como quem tivesse levado horas para armá-lo daquela forma.

Ele volta a entrelaçar as mãos entre as pernas. Não há pista alguma sobre seus nomes. Podem se chamar Zulmira e Adolfo ou mesmo Catarina e Jorge. De onde são? Pode ser tanto do Piauí quanto do Rio Grande do Sul, apesar de a esposa ter um tom de pele próximo ao de uma bala de caramelo. E Deus, como seu antebraço é fino! Só percebo isso agora, que ela ergueu um dos braços, segurando um dos ferros de apoio verticais do vagão. Ele nem tanto, é até bastante preenchido para alguém com sua idade. Idade de quem já teve de tudo, independente de ser rico ou pobre.

Permanecem calados. Falam bem pouco mesmo. Mas falar o quê? Para quê? Por quê? Nem escutando parecem que estão. Os olhos (de ambos, cansados) são o que estabelecem comunicação maior com o mundo. Eternamente marejados, os deles. Eternamente presentes. São avós, bisavós, quantos geraram? Para onde viajam? Que - pouquíssimos - assuntos são os seus? Ela fala a palavra "porta" junto a outras tantas irreconhecíveis. Só eles se entendem. Até que, prestando atenção numa conversa alheia sobre futebol, ele ri. Sem dentes mas não mostra a gengiva. Volta a ficar sério, desliga-se do assunto e volta a compor a mesma imagem inicial de ambos, o mesmo par de estátuas vivas & documento da vida em casal. As pernas dela cruzadas. Sua mãos sobre a coxa do marido. Ah, a cumplicidade!




Brayan Carvalho

3 comentários:

  1. Que lindo Brayan.
    Emocionante!
    Não poderia deixar de vim aqui conferir mais uma noticia sua.

    Grande Beijo.

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  2. 8-) É disso que você sempre fala?

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  3. Você falando desse casal, lembrei dos avós da minha amiga que completaram 56 anos de casados sábado. Muito lindo!

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